O eB, com autorização do seu autor, José Peres Valério, aqui reproduz mais um excelente "contributo histórico", o XI, sobre a historia da água e dos aguadêros de Barrancos, profissão que progressivamente se extinguiu depois de 1982/83, data da "ligação dos primeiros ramais domiciliários de água": "Não
é fácil escrever sobre esse líquido precioso que é a Água.
Com
esta pequena sinopse, quero exprimir a situação de escassez de água, vivida em
Barrancos, nas décadas anteriores a 1960/70, inclusive.
A água, cuja fórmula química é H2O
(dois átomos de hidrogénio e um de oxigénio), é um bem valiosíssimo de que
todos os seres vivos necessitam.
Ela
ocupa uma abundância muito expressiva na Terra, em três estados físicos: líquido,
sólido e gasoso, distribuída principalmente por oceanos, rios e lagos. Os oceanos
cobrem a maior parte da superfície da Terra. Mas, por força da sua salinidade,
a água é imprópria para ser consumida por grande parte dos seres vivos no meio
terrestre. Por sua vez, a água doce aplica-se a estes seres vivos, bem como à
agricultura e outras. As atividades agrícolas exigem grandes retiradas de água
do leito natural (terrenos cobertos pelas águas não influenciadas por cheias,
inundações, etc.), bem como das águas subterrâneas com aberturas de furos hertzianos.
Pensa-se
que já nesse tempo, a poluição hídrica existente comprometia a qualidade da
água, porém menos que atualmente.
Como
se calcula, a distribuição da água não é uniforme, uma vez que existem diversas
regiões que sofrem de escassez deste recurso.
Segundo
a ONU: «três em cada dez pessoas não têm acesso a água
potável, mais de 2 mil milhões vivem em países com um elevado nível de “stress”
hídrico e cerca de 4 mil milhões de pessoas passam por uma grave escassez de
água potável durante, pelo menos, um mês do ano.»
Chegado
aqui e depois desta breve introdução, importa analisar o que foi a carência de
água naquele tempo em Barrancos. Haverá quem reconheça o que se segue, pois
muitos dos que passaram por aquela situação, ainda estão entre nós.
Barrancos
sempre teve uma disparidade entre inverno e Verão. Na década de 1960/70 e
anteriores, como se diz, havia temporais agressivos. Começava a chover em setembro/outubro
e passavam dias, semanas e até meses sem deixar de cair. Os campos alagados criavam grandes transtornos,
nomeadamente nas sementeiras que por norma tinham início no mês de setembro. Os
caminhos de terra batida, em certos sítios, eram autênticos lodaçais. Os
animais atascavam-se. As pessoas que percorriam esses itinerários, em alguns sítios,
tinham que pôr pedras para poderem passar, com muito cuidado, não fossem
surpreendidas por alguma queda e saírem todas enlameadas ou com danos mais graves. Por sua vez, os verões
secos e agrestes, com temperaturas altíssimas, causavam e causam um impacto
acentuado na quantidade de água disponível nos terrenos, poços e fontes. Era
nessas reservas que a população se abastecia. Existiam anos em que os verões
eram tão rígidos, que as pessoas que recorriam à água dos poços, que abaixo se
indicam, esgotavam-nos e só recuperavam durante a noite. O Poço Novo tinha uma nascente maior que todos
os outros com exceção da Ferrenha. Esgotadas
as nascentes menores, as pessoas iam, com burros ou outros meios, buscar água a
este poço.
Nas
bicas, corria um fio de água a ponto de as pessoas fazerem bicha para encher um
cântaro ou uma carga. Eram horas à espera que chegasse a vez. O mesmo acontecia
na nascente da Pipa.
Logo
de manhã, as mulheres, (sim, porque os homens,
por norma tinham de se deslocar
ao campo, trabalho que prevalecia naquele tempo, entre outros, trabalhando de
sol a sol), apanhavam nos cântaros de barro
e deslocavam-se ao poço ou bica mais próximos da sua residência para
acarretarem a água necessária para o consumo diário. Havia pessoas que saiam de
madrugada para ir a esses poços buscar o líquido precioso em virtude do
declínio das nascentes durante o dia. Mulheres havia que transportavam um
cântaro à cabeça em cima de uma rodilha e outro no quadril, (autênticas
equilibristas), percorrendo as ruas ingremes que a vila tem. Chegadas ao
destino, com o esforço despendido, tinham mais vontade de se deitar do que
começar outros trabalhos. Outras mulheres, que tinham meios de transporte, como
burros ou muares, poupavam esforços em relação àquelas que se deslocavam a pé.
Após
o acarreto da água, palmilhando o terreno por três, quatro ou mais vezes num
trabalho árduo (aquelas que tinham
ajustado serviços com outras pessoas mais abastadas), ainda que com todas as dificuldades passadas, mal
alimentadas, encontravam resiliência para adquirir forças e trabalhar o resto
do dia, conseguindo superar as situações mais difíceis.
Os
homens desempenhavam este serviço no dia de descanso (domingo) ou quando
estavam parados (desempregados), por norma com burros ou muares.
A
maioria destas pessoas pertenciam a uma classe social baixa, pobre, com suas
necessidades de sobrevivência. Gente que, para ganhar uns parcos tostões, tinha
que fazer grandes sacrifícios!
As
casas dos lavradores tinham criados que iam buscar água. Estes percorriam todos
os locais abaixo citados de forma que a carregassem para casa dos patrões, durante
todo o dia, e em alguns casos, deitavam-na em poços que existiam nas
residências. Daí verificar-se o vazio quase total nos poços para o
abastecimento público. Estes criados iam buscar a água com animais com quatro
barris de 15 l cada. Mas, como se diz, algumas casas tinham pipas (vasilha grande de madeira usada para
transportar água em cima de uma estrutura de madeira puxada por um animal, geralmente muar ou cavalar).
Nesses períodos gravosos, deslocavam-se até à Herdade da Contenda, ao poço de
Vale Cristiana, que dista de Barrancos aproximadamente 6/7 km, possuidor de uma
grande nascente que dava oportunidade aos outros de recuperar. Houve quem
dissesse, naquele tempo, que havia um projeto para canalizar a água para
Barrancos. Defendiam, que na zona deste poço existia um grande lençol de água.
A verdade é que de água canalizada, nada.
Os
vasilhames com que transportavam a água eram: como atrás se diz, cântaros de barro
ou zinco, carburo (recipiente em forma de
balde, em zinco), barris de madeira de 12 e 15 litros e, ainda, a pipa.
Eram tempos muito difíceis. Tempos em que quando as pessoas chegavam do
trabalho, cansados(as), sujos(as), da agricultura ou outros, apeteciam-lhes um
retemperado banho ou duche. Todavia quedavam por se lavar num alguidar ou
paneira, à falta de água canalizada, aproveitando a do banho ainda para outros
desempenhos. Inadvertidamente cada um fazia racionamento para evitar o desperdício.
Na
povoação, havia pessoas sem possibilidades de ir buscá-la e para resolverem a
situação compravam ao Tio Zé Cubilha que, com os filhos Zé e Chico, todo o ano
vendiam um cântaro ou dois, ou até uma carga, formada por quatro cântaros de
barro. Também existiam outros que esporadicamente a vendiam.
Posto
isto, esta água, utilizada nos mais variados processos, de que o povo
beneficiava, dos poços e bicas, seria potável!? Nunca, que se saiba, nesse espaço de tempo,
houve análises a este bem. Igualmente, para ela se tornar potável era
necessário passar por várias operações até chegar à situação de ter qualidade suficiente
para o consumo humano (beber e preparar os alimentos).
Onde
quer que houvesse uma “pinga” de água, o povo não se importava de adquiri-la
para seu proveito. Nos campos, habitados por pessoas que aí trabalhavam, com
vivência dia e noite, bebia-se das fontes, poços e até dos rios correntes.
Eram
os seguintes poços para abastecimento público: Poço do Galapêro, no caminho
para as Eiras de Carrasco; Poço de Martins, hoje, soterrado, na propriedade do
Mário Ruivo, também no caminho para as Eiras de Carrasco; Poço dos árvores,
sito próximo da Bica grande; Poço da Praça, sito no fundo da Rua da Igreja,
hoje tapado com o edifício da oficina do
falecido Leonardo Sena, já desativada; Poço velho, sito no fim da Rua Dr. Mendes Ribeiro; Poço Novo,
que abastecia o Matadouro municipal, hoje Rua do Lagar; Poço na Adua, hoje, soterrado, na
entrada do pavilhão gimnodesportivo; Poço sito no largo do Mercado, hoje
soterrado, na porta grande de entrada
para o centro de saúde; Poço da
ferrenha; Poço dos Cascáveis, sito junto a estrada internacional no término das
casas; Outro a escassos metros deste e
Poço por detrás do campo de futebol, hoje soterrado com o alargamento do campo.
Todos foram tapados pela Junta de Freguesia.
Fontanários
existiam e existem: Bica grande, como atrás se diz; Biquinha, na Rua das Bicas;
Bicas do baldio de cima e de baixo; Bica da Lancheira, sita na Estrada
Internacional junto a fronteira e a Pipa que dista, aproximadamente 3 Km.
Entretanto,
nas décadas de 70 início de 80 do século passado, já os meios de transporte
eram mais acessíveis, com o aparecimento de motorizadas e carros.
Contudo,
com o advento do 25 de Abril de 1974 a situação mudou radicalmente proporcionando
às populações a criação da tão desejada água potável e o saneamento básico. Mais
tarde, no princípio da década de 80 do século XX, a população passou a ter
acesso a água canalizada e o povo deixou de passar as agruras de outros tempos
que tão hostis tinham sido para todos.
Barrancos,
17/10/20
Ass)
José Peres Valério"
aguadeiros na Bica Grande
entre a Bica e a Biquinha, junto ao atua jardim das Bicas
mulher com cântaro à cabeça e jovem com burro, no início da
rua da Igreja, (subir), frente à atual urbanização da Biquinha
a beber água fresca pelo piporro, na rua da Igreja
jovem a descarregar os cântaros de lata, na rua da Igreja
"a buscar" água à Bica do Baldio
(Fotos: Manuel Valério, s/data)