Publicamos hoje, o XVIII, "contributo" de José Peres Valério, desta vez sobre a Fêra de Barrancos e toda a sua envolvência e ritual:
A fêra, orgulho de qualquer Barranquenho que se preze, é realizada de 28 a 31 de Agosto de cada ano. Não é fácil escrever sobre a fêra se observamos a diversidade de acontecimentos que se arrasta desde o seu início. Porém, vou tentar fazer o melhor que sei e transmitir uma curta narrativa. Não vou evidenciar as fêras da década de 1990 e seguintes, já que essas estão, ainda, bastante presentes na memória da população.
Com
o estalejar dos foguetes às 00H00m do dia 1 de agosto de cada ano, tem inicio a
fêra de Barrancos. A partir daí, nas
sociedades, Cafés, Tabernas, ou ao fresco na porta da rua, desenrolavam-se conversas em torno da fêra. Eram constantes perguntas aos 5 festeiros: Quantos
touros trazem? Quem são os toureiros? Quem são as animadoras/orquestras? Hoje nem tanto. A azafama com o embelezamento dos prédios interior e exterior com
pinturas. Alvura que carateriza a nossa
terra, é uma constante.
Dia 15
de Agosto dia de Santa Maria, a comissão de festa percorre todas as ruas, porta a porta, com o
guião e o bibo (tamborileiro), fazendo o peditório para ajuda da festa com a
colaboração das pessoas em numerário ou géneros. Estes, leiloados à noite na
praça.
Os tabuados, bancadas estruturadas em madeira na
Praça da Liberdade têm uma capacidade de 830 lugares divididos em oito tabuados
que preenchem a praça conforme informação prestada pelo eB (Jacinto Saramago). Até 1986 eram leiloados no dia 18 de Agosto
na citada Praça. Depois do leilão, eram erguidos por particulares que ofereciam
os valores mais altos. Construíam-nos por conta própria, com os materiais
adequados e exploravam-nos nos dias da corrida. Às vezes, este procedimento de
aquisição e construção acarretava pequenas disputas entre licitantes, o que
originava que construções próximas nem
sequer se tocassem.
Entretanto começa a haver descontentamento
entre a população, pela falta de interessados para construir os tabuados, bem
como pelas discórdias mencionadas. Uns
queriam que fosse a Câmara a tomar conta da construção da praça, outros achavam
como vinha sendo hábito e outros ainda, com opinião diversa. Face a estas
contradições, a Câmara resolveu, por referendo, consultar a população, a fim de
escolher a forma como havia de prosseguir a montagem. A partir de 1987 e após
votação, decidiu-se que a montagem ficaria a cargo da Câmara, com materiais e
mão de obra do município, sendo a exploração cedida às comissões de festas.
Ainda a 18 de Agosto, são leiloados o bufete e a areia para espalhar na praça.
O
Barranquenho faz deste período o “Natal” em família. Em finais da década de
1950 e princípio de 1960, verificou-se um grande êxodo. Muita gente procurou
trabalho noutras paragens, porque na sua terra não tinha como ganhar o pão. Estes
ausentes regressavam à sua terra matando as saudades que lhes iam na alma e
confraternizando com seus familiares e amigos. O regresso por norma em
camionetas da Empresa de Viação Barranquense acontecia em dias próximos da
fêra. De Moura partiam duas ou três camionetas cheias de pessoal que era
esperado por familiares residentes por volta das 19h30m com o eclodir de
foguetes. Com a evolução da sociedade, tudo mudou neste aspeto e esta prática
anual perdeu-se no tempo. Os carros substituíram as camionetas e os foguetes
estalam uma vez por outra.
Dia 28, o primeiro dia da fêra, é dedicado à
padroeira de Barrancos, Nossa Senhora da Conceição, com procissão pelas
principais artérias da vila, abrilhantada pela Banda Filarmónica Fim de Século
de Barrancos, como manda a tradição. Quatro dias em que muitos não conhecem a
cama. Em tempos mais recuado a cama eram os tabuados depois de terminado o
baile.
De 29 a 31 são as tradicionais touradas,
com touros de morte, realizam-se, diariamente, os encerros dos touros
pelas 8 horas, até 1976. Antes eram feitos a pé, ou seja: os touros eram
comprados nas várias ganadarias e transportados para a cerca dos picos
(courelas) onde aguardavam a deslocação para a praça. De manhã, aproximadamente
às 6 horas, um conjunto de voluntários, com seus cavalos, deslocavam-se à cerca
e traziam-nos à praça com entrada pela rua da Igreja, a sul. A juventude com o
seu apego a festa brava não perdia o mínimo espaço de tempo sem que estivesse
muito próximo dela. Para tanto, deslocavam-se cerca de dois quilómetros, às
Eiras de Carrasco, saltando paredes de corrais, aqui e ali, para se aproximarem
o mais possível aos touros que vinham pelo caminho, em terra batida. Às vezes, os
menos foitos, não deixavam de olhar para a árvore mais próxima (oliveira ou
azinheira) não fosse o diabo tecê-la. Antes prevenir que remediar. E assim seguiam
atrás dos cavaleiros e reses até à entrada da rua. Na praça, constantemente se ouviam
gritos de: aí biene, aí biene!
Anos houve que chegados ao meio da rua, certos animais, estranhando o ambiente,
diziam: “não vou mais para frente” e
resolviam voltar-se transpondo campos desconhecidos sem que alguém fosse capaz
de os sujeitar. Então, os cavaleiros perseguiam-nos, por vezes até Espanha, até
os conseguirem pôr na respetiva cerca. Houve tardes em que os touros não
chegaram até próximo da hora da corrida. Mas com a boa vontade de terceiros lá
se remediava a situação e se realizava a corrida. Certa manhã, com a rua cheia
de gente, um desses touros, ao voltar-se, perseguiu um cavalo, colhendo-o e
ferindo-o com gravidade, sem que resistisse aos ferimentos. Face a este
acidente os encerros a pé tiveram o seu fim.
Entrados
na praça havia que apanhá-los e mete-los no encerro. Como hoje. Os mais
destemidos corriam à volta deles, mas sem lhe tocar! não era com eles! Até que
se ouviam vozes algures na praça: à la
unha, à la unha!, pedindo que agarrassem o animal a braços, afastando a
corda com que eram presos. Depois de tanta insistência, lá aparece um grupo
aguerrido que consegue os seus intentos e o touro é encerrado no curro, à unha,
até à hora da corrida.
A
partir de 1977, pelo motivo atrás exposto, os encerros passam a ser feitos entrada
da referida rua, fechada com barreira em madeira, onde são largados os touros, uma
vez que o anterior sistema, não oferecia segurança. ─ No fim da década de 50,
Século XX, a casa dos lavradores Irmãos Fialhos adquire uma ganadaria de gado
bravo, mais tarde vendida, em 1968, a António José da Veiga Teixeira, e passa a
vender os touros para a festa. Estes animais faziam a deslocação conduzidos por
empregados da casa, alguns dos novilheiros abaixo citados e outros. Entretanto,
em 1971 é criada a ganadaria de Couto de Fornilhos que, com a desistência
daquela, passaram a negociar e transportar as respetivas reses, com seus
empregados e outros.
De
sublinhar que a casa Fialhos disponibilizou alguns anos reses para
charlotada noturnas com os intervenientes
novilheiros, mais tarde de renome: José
Simões, Óscar Rosmano; Amadeu dos Anjos; José Falcão; este falecido na praça de
touros de Barcelona com uma cornada femoral em 11/8/1974, e bandarilheiros: Guilherme
Pereira, Manuel e António Badajoz, que proporcionavam um espetáculo nunca visto
nesta terra com a população numa ostentação invulgar de contentamento.
À tarde, pelas 19 horas, dá-se o início das
corridas com um touro por dia e uma vaca, dia 31, para os aficionados. Mais
tarde, fins da década de1950 principio de 1960, passou a haver dois touros e
dia 31 a vaca, consoante o dinheiro reunido no peditório de Santa Maria, leilão
de oferendas e dos tabuados, até 1986. Os novilheiros e toureiros espanhóis que
as comissões de festa apresentaram foram, entre outros: Manolo Serpa; Niño
Laine; Galapago (bandarilheiro); Espartaco (pai); Bernardo Valência; Morante de
la Puebla; Antonio Ferrera, estes ainda
no ativo; sem esquecer o Pepe Câmara, “filho adotivo” de Barrancos. Sim, porque
após cornada gravíssima sofrida num encerro, em 1972, foi transportado de
urgência em automóvel particular, ambulância indisponível, para o Hospital de
Beja, (a 110 quilómetros) com uma perfuração pulmonar. Não vou citar os que o
ajudaram mas que mostraram altruísmo por
aquele amante da festa brava que quiz ser alguém no mundo do touro. Foi uma
manhã de infortúnio em que arriscou a própria vida por tudo o que lhe ia na
alma. Curado, agradeceu ao povo o apoio e o carinho que lhe prestou.
Prosseguindo com a sua tenacidade em ser alguém no mundo taurino, obteve o
estatuto de matador de touro na praça de Figueras, município da província de Girona,
comunidade da Catalunha, confirmando a alternativa na monumental de Madrid. Não
esquecendo o bem que este povo lhe trouxe, voltou alguns anos, como cabeça de
cartaz, às touradas desta terra e restituiu, ao povo de Barrancos, o seu
primeiro traje de luzes (presenteado pela comissão de festas de 1975 e agora em
exposição na sala de Turismo). Naquele tempo não era permitida a lide com
toureiros portugueses até à aprovação da Lei, que permite os touros de morte. Touradas
houve que faziam e fazem inveja a certas praças fechadas.
Nas variedades, mantem-se a
tradição do antigamente com animadora, conjuntos espanhóis e grupos corais na
praça até à meia noite, seguindo para o quintalão até 5 ou 6 horas do dia seguinte.
Todavia, décadas anteriores a 1970, os bailes eram feitos na escola primaria
dos rapazes na Rua Dr. Filipe de Figueiredo. Uma fêra de arromba!
Recuando
107 anos, diz-nos a história que no ano de 1914 com o eclodir da primeira
guerra mundial em 28 de Julho, os responsáveis de então: Presidente da festa,
senhor José Blanco Fialho; Secretário, senhor João Oliveira Escoval e Tesoureiro,
senhor António Reganha Xarrama, julgaram por bem transferir as festas para: dia
6 de Setembro (peditório e leilão) e de 12 a 14 a festa brava, "alegando a má impressão que causa em todos os espíritos o rebentar da guerra
Europeia que teve lugar nesses dias". De citar que nesse ano não
existia comissão de festa com 5 membros, como hoje. Julga-se ter sido uma
comissão constituída pelos citados, desconhecendo-se se seria prática comum
naquele tempo. Porém os citados decidem:
- Comprar quatro touros dos campos de Coimbra na feira da Malveira no dia 28 de Maio de 1914 a Francisco Duarte Resina, saindo da Azambuja em 6 de Junho de manhã, chegando aos currais de Vale de Corcho nas Russianas no dia 11 ao escurecer, gastando 6 dias no percurso, conduzidos por dois homens, a pé, chegando o gado em mísero estado. Cada touro custou 50 escudos. Depois de reposto uns quilos, foram corridos e estoqueados pelo espada José Rodrigues Baez LITRI II de Huelva e sua quadrilha;
- Atribuir um bodo a 112 pobres com a carne de dois touros, cabendo a cada um 3 Kg., com osso e algum dinheiro que sobrou da festa;
- Atribuir o saldo apurado de 115,21 escudos ao Senhor Dr. Filipe de Figueiredo, para empregar no que julgar mais necessário para o consultório dos pobres desta vila.
Resumo contabilístico: Receita:-
443,95;
Despesa:- 328,74; Saldo apurado = 115,21 escudos.
Finda a presente descrição, resta-me desejar que a peste que nos assola (pandemia Covid 19), desapareça rapidamente e nos deixe usufruir da nossa tão ambicionada fêra.
Ass) José Peres Valério
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