Mais uma excelente crónica de José Peres Valério:
"Não é fácil escrever sobre este tema se atendermos às diversas situações em que a criança estava inserida. No entanto, vou tentar transmitir nesta narrativa o melhor que sei por forma a ficar com uma ideia do que era a criança naquele tempo. Tempos amargos!!.
"Não é fácil escrever sobre este tema se atendermos às diversas situações em que a criança estava inserida. No entanto, vou tentar transmitir nesta narrativa o melhor que sei por forma a ficar com uma ideia do que era a criança naquele tempo. Tempos amargos!!.
Os primeiros
trambolhões que qualquer ser humano leva é quando nasce e quer começar a andar.
Cai, levanta-se, torna a cair, levanta-se até que um dia ela, criança, começa a
girar. Tem pela frente um espaço infinito que se abre à sua volta, mas com o
continuar da idade e os estádios que vai passando, vai aprendendo a fazer tudo
o que os seus progenitores e outros lhes vão ensinando.
Como a vida é dura,
muitas delas, além destes, começam cedo a levar trambolhões!
Entretanto, a criança
antes de atingir a idade obrigatória para ir à escola, naquela época aos 7 anos, passa por vários
estádios, ou seja, a transformação que a criança vai sofrendo desde o
nascimento até esta idade, sendo uma das principais a necessidade física da
criança, a alimentação, higiene e uma casa condigna, como em todo o resto da
vida.
Durante o Estado Novo
só era obrigatório frequentar a escola até à 3ª. classe. Só em 1956 torna-se
obrigatório os 4 anos de ensino primário, mas só para o sexo masculino, sendo
alargado para o sexo feminino em 1960. Sabendo-se que a obrigatoriedade do
ingresso escolar se reporta a 1835 (séc. XIX), ainda na monarquia, existindo,
que saiba, dados apenas através dos censos de 1900, a nível nacional, que para
a idade de 10 e mais anos, existia uma taxa de alfabetização de apenas 27% da população; em 1940 de 46%; em 1950 de 58%; em 1960 de 67% e em 1970 de
74%. Como se pode verificar, a taxa de analfabetos existentes em 1940 é de 54%;
em 1950 de 42%; em 1960 de 33% e em 1970 de 26%. Como se depreende, no período
em questão, essas crianças, analfabetas, como o tempo da escolaridade não era
ocupado, certamente andavam a dar apoio
aos pais nos trabalhos que estavam empenhados, nomeadamente no campo, que era o
que predominava e outros ainda pelo abandono, devido à distância. De anotar que
antes do século XV, a criança era vista como um adulto, não havendo nenhuma Lei
que as protege-se. Só em 1911, 1ª. República do séc. XX, é que é criada a Lei
de Proteção à Infância, nunca aplicada, sobretudo no período do Estado Novo,
até à Consagração na Constituição da República Portuguesa de 1976.
Este período, sob a ditadura,
fez com que a juventude tivesse um grau de iliteracia significativa contribuindo
de tal forma para que a maioria das crianças fossem empurradas para o obscurantismo/ignorância,
contribuindo para o atraso de um século em relação aos países desenvolvidos.
É óbvio que nem todas as
crianças eram iguais, por força da sociedade em que se vivia. Havia famílias
com um extrato social indigente (pobre), com pouca ou nenhuma capacidade
financeira, e outras com um extrato social média/alta com grande capacidade financeira.
As pobres, têm uma vida
de pobreza extrema, que por motivos vários os pais não têm um tostão para lhes
comprar uma simples chupeta de borracha; quando nasciam, improvisava-se um
bocado de pano, enrolando-o, atado com um fio, molhado em água untado com
açúcar para dar à criança/bebé, quando chorava calar-se. Brinquedos: sabendo da
importância para o desenvolvimento da criança, principalmente didáticos,
naquele tempo nada disso tinham. As que viviam no campo tinham como diversão
brincar com os chibinhos (cabritos) que nasciam ou borreguinhos (cordeiros),
que entre ambos formavam uma simbiose salutar; e outros que elas próprias inventavam.
A alimentação era pouca e desnutrida, levando muitas ao aparecimento de doenças
que muitas vezes originavam a morte. Gente carenciada em todos os aspetos!!!.
As que têm uma grande
capacidade financeira, podem dar-lhes uma chupeta de borracha, ou de qualquer
outra espécie, e os brinquedos, alimentação e tudo o que a criança mais gostasse.
Posto isto, havia uma diferenciação entre as classes sociais que
era abismal. As crianças deveriam ter tido todas o mesmo tratamento social. Mas
não foi isso que aconteceu. Senão vejamos: nas décadas supracitadas, em
Barrancos como julgo em todo o país, as crianças dos pobres quando nasciam não tinham nem um berço
para se deitar condignamente; As mães, algumas delas, quando se deslocavam a
trabalhar no campo, lavar roupa ou outros trabalhos, levavam os filhos com elas porque não tinham
onde os deixar, e improvisavam um berço
ou coisa parecida até à tarde de regresso à casa. Dias estes que a criança
sofria com todas as vicissitudes da vida.
Em sentido oposto, as
famílias com capacidade financeira têm tudo de bom para seus filhos, sem que
tenham que passar pelas dificuldades que os outros passaram nem as canseiras
que os pais destes tinham para dar-lhe um agasalho e bem-estar aos seus filhos.
Tempos em que a
adversidade grassava por todo o lado!!!
Mais tarde, a classe
pobre e outras da classe superior (poucas) por norma quando entravam na
escola, os divertimentos com que passavam o tempo, além das inerentes à
escola, eram brincadeiras mais para rapazes do que para raparigas: a jogar ao
eixo, choca, corda, rebenta-e-três, burro na parede, ao pião, a bola, improvisada
de trapos metidos numa meia, boliche (berlinde) e outros.
Neste espaço de tempo
ela brinca com brinquedos que os pais tiveram capacidade monetária para lhes
comprar. Sim, porque nem todos podem comprar os brinquedos que a criança
desejaria, uma vez que a grande maioria dos pais, naquele tempo, queriam 3$30 (três
escudos e trinta centavos) para comprar um pão a preços da década 50/60, e não
o tinham.
No Natal, estas
crianças, com aquela inquietação, vulgar nelas, desesperavam na ansiedade de
ver a luz do dia; nem dormiam, para ver
os presentes que o “Pai Natal”, na
altura Menino Jesus, tinha posto no sapato. Como eram pobres, os pais sem meios de
subsistência, lá conseguiam colocar no sapato uns rebuçados, tablete de
chocolate, lenço de mão, etc. Artigos de valor insignificante, mas a criança
ficava toda contente!!!.
Chegado aos 7 anos de
idade havia a necessidade de matricular os filhos.
Para os pais que tinham
a sua vida na vila era fácil. Para os que passavam uma grande parte da sua vida
no campo, casos havia que só vinham à vila nestas alturas, em dias festivos,
como o Natal ou a fêra, tornava-se mais difícil.
Mas como havia muita
gente fixadas no campo, houve a necessidade de criarem uma escola na
herdade dos Fornilhos, propriedade de José Maria Machado, e outra na Mina da
Apariz. Nos Fornilhos, a fim de dar cobertura a todas as crianças existentes na
periferia da herdade, situada na
Freguesia da Amareleja, concelho de Moura, que limita com o concelho de
Barrancos, abrangendo as Herdades da Viadeira, Cardador de Baixo e de Cima, Botefa,
etc.. Crianças havia que tinham que percorrer aproximadamente 6 km, algumas descalças, salvo as da
área da Botefa, que o proprietário da herdade trazia numa carrinha onde
transportava os filhos dos seus trabalhadores para poderem frequentar as aulas administradas
por uma regente de ensino até a 4ª. classe.
Na Mina da Apariz a
situação era diferente, em virtude de ter um aglomerado populacional elevado.
Sendo que os alunos, salvo raras exceções, viviam todos naquele local
frequentando o ensino, também, até à 4ª. classe.
A escola da vila, para além
os residentes, era frequentada pelas crianças das herdades de Russianas, da Contenda
e outras da periferia, que se deslocavam a pé percorrendo aproximadamente 6 a 7
km, desde alguns sítios, uma vez que as herdades tinham uma dimensão enorme. Todas estas crianças calcorreavam esses
caminhos aguentando as intempéries: calor, chuva, vento, frio,..
Vestuário: bastante
precário. Muitos casos houve que usavam calça curta, os rapazes, em todas as
estações do ano, porque não havia dinheiro para calça comprida, que só vestiam quando
atingiam a idade de 9/10 anos ou mais, quando os pais faziam o sacrifício,
porque já eram uns homenzinhos. As raparigas usavam vestidos.
Entretanto, também
havia as escolas particulares das Meninas Pinto e da D. Bella Pulido onde
algumas crianças, davam os primeiros passos na aprendizagem escolar.
Não foi nada fácil para
estas crianças, hoje, muitas delas, Mães e Pais!!!
Tempos que certamente
não esquecerão!
Entretanto, quantas
delas no pós-escolar tinham que dar apoio aos pais, face as suas potencialidades
físicas, a guardar o gado e outros afazeres, como sachar (mondar), apanhar
azeitona, etc, tanto para as que viviam no campo como para as que moravam na
Vila. No entanto, casos havia também que, com uma enfusa - (pequeno cântaro) – ajudavam
os pais, nomeadamente a mãe, a trazer água dos fontanários ou poços, porque
água canalizada nem sonhar. Carregadas, aos ombros ou quadris, por falta de
animais, para ajudar com alguns irrisórios tostões para o agregado familiar com
a venda da mesma. As raparigas iam ainda
lavar roupa ao lado da mãe, que tinha apalavrado com algumas pessoas mais
abastadas, nos batideiros (pedra para esfregar a roupa) do Arroio, da Ribêra ou
da Pipa, ou a “servir” nas casas de lavradores, de alguns funcionários públicos
ou de outros serviços.
Estas crianças estavam
mal nutridas porque as jornas dos pais, quando recebiam, não lhes dava para
poderem pôr na mesa a alimentação com nutrientes suficientes para seus filhos,
a fim de poderem ter um desempenho eficaz nos estudos.
No período do término
da 4ª, classe, até a idade de 12/15 anos, por vezes antes, os pais daqueles que
moravam na vila, e também alguns do campo, que tinham maior disponibilidade
financeira (poucos), ocupavam-nos na aprendizagem de um ofício. Outros, ainda,
cujos pais não tinham essa possibilidade, aprendiam o oficio só até que tivessem
capacidades física para desempenharem outras atividades mais rentáveis para
arrecadar umas migalhas para a família.
E é aqui, quando as
crianças ocupam outras atividades, que deixam de ser crianças para passarem a
ser “emancipadas”, ou “maior idade”.
Pois passam a ter responsabilidades no desempenho das funções que lhes são atribuídas.
Exercem as mais variadas atividades: de trabalhos de campo, a guardar gado, a acarretar
água para casa de lavradores, nos cafés e tabernas, na sociedade (coletividades),
e trabalhos inerentes a função, etc.. Apanhar azeitona, sachar (mondar),
trabalho na estrada, etc. para poderem ajudar os seus pais que muitas vezes
querem trabalho e não têm. E estas crianças, com o seu sentimento altruísta,
contribuem para o sustente da família com a parca remuneração que usufruem cujo
valor, nestes últimos trabalhos, é menos de metade do adulto, para o mesmo
trabalho deste.
Algumas houve que
tiveram que emigrar por falta de oportunidades na Terra e, sabendo as dificuldades que tinham deixado
para traz, do magro soldo que usufruíam ainda
mandavam uma quota parte para seus pais.
Estas crianças NUNCA FORAM CRIANÇAS, passaram muitas
privações, fome e sofrimento!
Com a Revolução dos Cravos,
em 25 de Abril de 1974, a criança começa a ocupar o lugar que lhes pertence,
que é seu !!!.
Crianças com responsabilidade
e humildade!
Crianças que não
olharam a sacrifícios para ajudar os seus pais nas dificuldades económicas que
constantemente se deparava a família!
Quem, Criança daquele
tempo, hoje adulto, Mãe ou Pai, não se recorda das adversidades que passaram?
Barrancos, 21/10/2019 - Ass) José Peres Valério"
"O trabalho infantil em Portugal - RTP, 1994"
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