quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Contributos para a história de Barrancos III - Homens e Mulheres que não foram crianças (Décadas de 40 até 60/70 do Séc. XX)

Mais uma excelente crónica de José Peres Valério:
"Não é fácil escrever sobre este tema se atendermos às diversas situações em que a criança estava inserida. No entanto, vou tentar transmitir nesta narrativa o melhor que sei por forma a ficar com uma ideia do que era a criança naquele tempo. Tempos amargos!!.
Os primeiros trambolhões que qualquer ser humano leva é quando nasce e quer começar a andar. Cai, levanta-se, torna a cair, levanta-se até que um dia ela, criança, começa a girar. Tem pela frente um espaço infinito que se abre à sua volta, mas com o continuar da idade e os estádios que vai passando, vai aprendendo a fazer tudo o que os seus progenitores e outros lhes vão ensinando.
Como a vida é dura, muitas delas, além destes, começam cedo a levar trambolhões!
Entretanto, a criança antes de atingir a idade obrigatória para ir  à escola,  naquela época aos 7 anos, passa por vários estádios, ou seja, a transformação que a criança vai sofrendo desde o nascimento até esta idade, sendo uma das principais a necessidade física da criança, a alimentação, higiene e uma casa condigna, como em todo o resto da vida.
Durante o Estado Novo só era obrigatório frequentar a escola até à 3ª. classe. Só em 1956 torna-se obrigatório os 4 anos de ensino primário, mas só para o sexo masculino, sendo alargado para o sexo feminino em 1960. Sabendo-se que a obrigatoriedade do ingresso escolar se reporta a 1835 (séc. XIX), ainda na monarquia, existindo, que saiba, dados apenas através dos censos de 1900, a nível nacional, que para a idade de 10 e mais anos, existia uma taxa de alfabetização de apenas 27% da população; em 1940 de 46%;  em 1950 de 58%; em 1960 de 67% e em 1970 de 74%. Como se pode verificar, a taxa de analfabetos existentes em 1940 é de 54%; em 1950 de 42%; em 1960 de 33% e em 1970 de 26%. Como se depreende, no período em questão, essas crianças, analfabetas, como o tempo da escolaridade não era ocupado, certamente andavam a dar  apoio aos pais nos trabalhos que estavam empenhados, nomeadamente no campo, que era o que predominava e outros ainda pelo abandono, devido à distância. De anotar que antes do século XV, a criança era vista como um adulto, não havendo nenhuma Lei que as protege-se. Só em 1911, 1ª. República do séc. XX, é que é criada a Lei de Proteção à Infância, nunca aplicada, sobretudo no período do Estado Novo, até à Consagração na Constituição da República Portuguesa de 1976.
Este período, sob a ditadura, fez com que a juventude tivesse um grau de iliteracia significativa contribuindo de tal forma para que a maioria das crianças fossem empurradas para o obscurantismo/ignorância, contribuindo para o atraso de um século em relação aos países desenvolvidos.
É óbvio que nem todas as crianças eram iguais, por força da sociedade em que se vivia. Havia famílias com um extrato social indigente (pobre), com pouca ou nenhuma capacidade financeira, e outras com um extrato social média/alta com grande  capacidade financeira.
As pobres, têm uma vida de pobreza extrema, que por motivos vários os pais não têm um tostão para lhes comprar uma simples chupeta de borracha; quando nasciam, improvisava-se um bocado de pano, enrolando-o, atado com um fio, molhado em água untado com açúcar para dar à criança/bebé, quando chorava calar-se. Brinquedos: sabendo da importância para o desenvolvimento da criança, principalmente didáticos, naquele tempo nada disso tinham. As que viviam no campo tinham como diversão brincar com os chibinhos (cabritos) que nasciam ou borreguinhos (cordeiros), que entre ambos formavam uma simbiose salutar; e outros que elas próprias inventavam. A alimentação era pouca e desnutrida, levando muitas ao aparecimento de doenças que muitas vezes originavam a morte. Gente carenciada em todos os aspetos!!!.
As que têm uma grande capacidade financeira, podem dar-lhes uma chupeta de borracha, ou de qualquer outra espécie, e os brinquedos, alimentação e tudo o  que a criança mais gostasse.
Posto isto, havia  uma diferenciação entre as classes sociais que era abismal. As crianças deveriam ter tido todas o mesmo tratamento social. Mas não foi isso que aconteceu. Senão vejamos: nas décadas supracitadas, em Barrancos como julgo em todo o país, as crianças dos  pobres quando nasciam não tinham nem um berço para se deitar condignamente; As mães, algumas delas, quando se deslocavam a trabalhar no campo, lavar roupa ou outros trabalhos,  levavam os filhos com elas porque não tinham onde os deixar, e  improvisavam um berço ou coisa parecida até à tarde de regresso à casa. Dias estes que a criança sofria com todas as vicissitudes da vida.
Em sentido oposto, as famílias com capacidade financeira têm tudo de bom para seus filhos, sem que tenham que passar pelas dificuldades que os outros passaram nem as canseiras que os pais destes tinham para dar-lhe um agasalho e bem-estar aos seus filhos.
Tempos em que a adversidade grassava por todo o lado!!!
Mais tarde, a classe pobre e outras da classe superior (poucas) por norma quando entravam na escola,  os divertimentos  com que passavam o tempo, além das inerentes à escola, eram brincadeiras mais para rapazes do que para raparigas: a jogar ao eixo, choca, corda, rebenta-e-três, burro na parede, ao pião, a bola, improvisada de trapos metidos numa meia, boliche (berlinde)  e outros.
Neste espaço de tempo ela brinca com brinquedos que os pais tiveram capacidade monetária para lhes comprar. Sim, porque nem todos podem comprar os brinquedos que a criança desejaria, uma vez que a grande maioria dos pais, naquele tempo, queriam 3$30 (três escudos e trinta centavos) para comprar um pão a preços da década 50/60, e não o tinham.
No Natal, estas crianças, com aquela inquietação, vulgar nelas, desesperavam na ansiedade de ver a luz do dia; nem dormiam,  para ver os presentes que  o “Pai Natal”, na altura Menino Jesus, tinha posto  no  sapato. Como eram pobres, os pais sem meios de subsistência, lá conseguiam colocar no sapato uns rebuçados, tablete de chocolate, lenço de mão, etc. Artigos de valor insignificante, mas a criança ficava  toda contente!!!.  
Chegado aos 7 anos de idade havia a necessidade de matricular os filhos.
Para os pais que tinham a sua vida na vila era fácil. Para os que passavam uma grande parte da sua vida no campo, casos havia que só vinham à vila nestas alturas, em dias festivos, como o Natal ou a fêra, tornava-se mais difícil.
Mas como havia muita gente fixadas no campo, houve a necessidade de criarem uma escola na herdade dos Fornilhos, propriedade de José Maria Machado, e outra na Mina da Apariz. Nos Fornilhos, a fim de dar cobertura a todas as crianças existentes na periferia da herdade, situada  na Freguesia da Amareleja, concelho de Moura, que limita com o concelho de Barrancos, abrangendo as Herdades da Viadeira, Cardador de Baixo e de Cima, Botefa, etc.. Crianças havia que tinham que percorrer aproximadamente 6 km, algumas descalças, salvo as da área da Botefa, que o proprietário da herdade trazia numa carrinha onde transportava os filhos dos seus trabalhadores  para poderem frequentar as aulas administradas por uma regente de ensino até a 4ª. classe.
Na Mina da Apariz a situação era diferente, em virtude de ter um aglomerado populacional elevado. Sendo que os alunos, salvo raras exceções, viviam todos naquele local frequentando o ensino, também, até à 4ª. classe.
A escola da vila, para além os residentes, era frequentada pelas crianças das herdades de Russianas, da Contenda e outras da periferia, que se deslocavam a pé percorrendo aproximadamente 6 a 7 km, desde alguns sítios, uma vez que as herdades tinham uma dimensão enorme. Todas estas crianças calcorreavam esses caminhos aguentando as intempéries: calor, chuva, vento, frio,..
Vestuário: bastante precário. Muitos casos houve que usavam calça curta, os rapazes, em todas as estações do ano, porque não havia dinheiro para calça comprida, que só vestiam quando atingiam a idade de 9/10 anos ou mais, quando os pais faziam o sacrifício, porque já eram uns homenzinhos. As raparigas usavam vestidos.
Entretanto, também havia as escolas particulares das Meninas Pinto e da D. Bella Pulido onde algumas crianças, davam os primeiros passos na aprendizagem escolar.
Não foi nada fácil para estas crianças, hoje, muitas delas, Mães e Pais!!!
Tempos que certamente não esquecerão!
Entretanto, quantas delas no pós-escolar tinham que dar apoio aos pais, face as suas potencialidades físicas, a guardar o gado e outros afazeres, como sachar (mondar), apanhar azeitona, etc, tanto para as que viviam no campo como para as que moravam na Vila. No entanto, casos havia também que, com uma enfusa - (pequeno cântaro) – ajudavam os pais, nomeadamente a mãe, a trazer água dos fontanários ou poços, porque água canalizada nem sonhar. Carregadas, aos ombros ou quadris, por falta de animais, para ajudar com alguns irrisórios tostões para o agregado familiar com a venda da  mesma. As raparigas iam ainda lavar roupa ao lado da mãe, que tinha apalavrado com algumas pessoas mais abastadas, nos batideiros (pedra para esfregar a roupa) do Arroio, da Ribêra ou da Pipa, ou a “servir” nas casas de lavradores, de alguns funcionários públicos ou de outros serviços.
Estas crianças estavam mal nutridas porque as jornas dos pais, quando recebiam, não lhes dava para poderem pôr na mesa a alimentação com nutrientes suficientes para seus filhos, a fim de poderem ter um desempenho eficaz nos estudos.
No período do término da 4ª, classe, até a idade de 12/15 anos, por vezes antes, os pais daqueles que moravam na vila, e também alguns do campo, que tinham maior disponibilidade financeira (poucos), ocupavam-nos na aprendizagem de um ofício. Outros, ainda, cujos pais não tinham essa possibilidade, aprendiam o oficio só até que tivessem capacidades física para desempenharem outras atividades mais rentáveis para arrecadar umas migalhas para a família.
E é aqui, quando as crianças ocupam outras atividades, que deixam de ser crianças para passarem a ser “emancipadas”, ou  “maior idade”. Pois passam a ter responsabilidades no desempenho das funções que lhes são atribuídas. Exercem as mais variadas atividades: de trabalhos de campo, a guardar gado, a acarretar água para casa de lavradores, nos cafés e tabernas, na sociedade (coletividades), e trabalhos inerentes a função, etc.. Apanhar azeitona, sachar (mondar), trabalho na estrada, etc. para poderem ajudar os seus pais que muitas vezes querem trabalho e não têm. E estas crianças, com o seu sentimento altruísta, contribuem para o sustente da família com a parca remuneração que usufruem cujo valor, nestes últimos trabalhos, é menos de metade do adulto, para o mesmo trabalho deste.
Algumas houve que tiveram que emigrar por falta de oportunidades na Terra  e, sabendo as dificuldades que tinham deixado para traz, do  magro soldo que usufruíam ainda mandavam uma quota parte para seus pais.
Estas crianças NUNCA FORAM CRIANÇAS, passaram muitas privações, fome e sofrimento!
Com a Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974, a criança começa a ocupar o lugar que lhes pertence, que é seu !!!.
Crianças com responsabilidade e humildade!
Crianças que não olharam a sacrifícios para ajudar os seus pais nas dificuldades económicas que constantemente se deparava a família!
Quem, Criança daquele tempo, hoje adulto, Mãe ou Pai, não se recorda das adversidades que passaram?
Barrancos, 21/10/2019 - Ass) José Peres Valério"

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