Entra hoje em vigor o Regime Jurídico do Maior Acompanhado
(Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto), que substitui os tradicionais
institutos da interdição e da inabilitação previstos no Código Civil,
prevendo um novo conjunto de medidas aplicáveis a adultos que, por doença,
deficiência ou pelo seu comportamento, estejam impossibilitados de plena,
pessoal e conscientemente exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres.
Neste sentido, a Lei n.º 49/2018 veio alterar, entre outros, o Código
Civil, o Código de Processo Civil, o Código de Registo Civil e o Código de
Processo Penal, entrando em vigor em fevereiro de 2018 (180 dias após a sua
publicação).
O anterior regime das «incapacidades de maiores» dividia-se nos
referidos institutos da interdição e da inabilitação. Quem sofresse de uma
doença grave e incapacitante era equiparado aos menores, sendo-lhe atribuído um
tutor. Quem sofresse de uma doença não totalmente incapacitante ou tivesse
tendência que o justificasse, como, por exemplo, a prodigalidade, dispunha da
assistência de um curador de que dependia a autorização para praticar
determinados atos.
Como se afirma na exposição de motivos da correspondente Proposta de Lei n.º
110/XIII, «não pode hoje haver dúvidas em considerar a pessoa com
deficiência como pessoa igual, sem prejuízo das necessidades especiais a
que a lei deve dar resposta».
Manifesta-se uma preocupação que pretende ser o paradigma do regime em
consonância com a Convenção das Nações Unidas,
perentória na eliminação de qualquer discriminação desta natureza.
Coerentemente, o legislador pretende agora deixar o máximo de espaço
possível à vontade e preferências efetivas do próprio «maior acompanhado».
O princípio dominante passa a ser o do respeito pela sua vontade, em lugar do
antigo princípio da prossecução do «interesse superior do incapaz».
Considerou, ademais, o legislador português que o regime existente tinha um
carácter rígido, inflexível e estigmatizante, não se adaptandoàs concretas
limitações do maior em causa e não dando o suficiente relevo ao papel da
família, nem à necessária reserva da vida pessoal e familiar.
No essencial e em síntese, as alterações substantivas feitas visaram o
seguinte:
· - aumentar a autonomia do maior impossibilitado até aos
limites do possível;
· - estabelecer o controlo jurisdicional de qualquer
constrangimento imposto ao maior acompanhado;
· - flexibilizar as medidas aplicáveis atendendo à
singularidade da situação, isto é,aos concretos interesses pessoais e
patrimoniais do visado (fazendo, para tal, intervir o Ministério Público sempre
que necessário);
· - agilizar os procedimentos existentes.
A Lei n.º 49/2018 criou, portanto, o modelo de acompanhamento. O
novo artigo 138.º do Código Civil reza que o maior acompanhado – que, por
razões de saúde ou deficiência, mas também «pelo seu comportamento», não
possa exercer plena, pessoal e conscientemente os seus direitos ou cumprir os
seus deveres - beneficiará de medidas de acompanhamento, tais como a sua
representação ou a administração dos seus bens, por um acompanhante, na medida
do necessário.
Atualmente, o acompanhamento deverá ser requerido pelo próprio ou pelo
cônjuge, unido de facto, ou por qualquer parente sucessível, dependendo,
contudo, de autorização do acompanhado, ou, independentemente desta autorização,
pelo Ministério Público. A autorização poderá, ainda, ser suprida pelo tribunal
quando o beneficiário não a possa dar livre e conscientemente.
O tutor e o curador dão, assim, lugar ao «acompanhante» ou «aos
acompanhantes» visto que a lei permite a sua «especialização» em
função de determinadas atribuições. O acompanhante será designado
judicialmente, mas escolhido pelo próprio acompanhado (caso não o seja, ou não
possa ser, será designado oficiosamente pelo tribunal que escolherá a pessoa
que melhor salvaguarde o interesse do beneficiário, preferencialmente um dos
seus familiares de acordo com uma lista não taxativa).
Mantém-se a gratuitidade de tais funções, sem prejuízo da dedução de
despesas, e reforça-se a necessidade de privilegiar o bem-estar e a recuperação
do acompanhado, estabelecendo-se mesmo que o acompanhante deve visitar o
acompanhado, pelo menos, uma vez por mês e cumprir os seus deveres com a
diligência de um «bom pai de família».
Uma importante alteração, pelo menos em função da referida mudança de
paradigma, é que, em regra e salvo disposição da lei ou decisão judicial em
contrário, serão livres, quer o exercício pelo acompanhado de direitos
pessoais – como, por exemplo, os direitos de casar, de procriar, de
educar os filhos, de se deslocar, de fixar domicílio ou de estabelecer relações
com quem entender –, quer a celebração de negócios da vida corrente.
Na mesma senda, introduz-se a possibilidade de o maior acompanhado
celebrar um mandato para a gestão dos seus interesses, prevenindo uma
situação hipotética em que necessite de acompanhamento. O mandato seguirá o
regime geral estabelecido no Código Civil e deverá ser aproveitado, o mais
possível, pelo tribunal.
Em qualquer caso, as medidas de acompanhamento decretadas serão revistas
periodicamente, num período mínimo de cinco anos, e o acompanhamento cessará,
ou sofrerá alterações, mediante nova decisão judicial que assim o entenda.
Note-se também que foram ainda efetuadas alterações nos seguintes regimes
substantivos:
(i) casamento (artigos 1601.º, 1604.º, 1621.º,
1633.º, 1639.º, 1643.º e 1650.º),
(ii) celebração de
convenções antenupciais (artigo 1708.º),
(iii) legitimidade
para propositura de ação de separação de bens ou divórcio (artigos 1769.º e
1785.º),
(iv) alimentos provisórios (artigo 1821.º),
(v) perfilhação
(artigos 1850.º, 1857.º e 1860.º,
(vi) responsabilidades
parentais (artigos 1913.º e 1914.º) e
(vii) testamento (2189.º).
Com a entrada em vigor do novo regime, todas as pessoas antes interditadas
ou inabilitadas passarão a ter o estatuto de maiores acompanhados. Os tutores e
curadores nomeados passarão a acompanhantes (com poderes gerais de
representação no primeiro caso e, no segundo caso, cabendo-lhes autorizar os
atos antes submetidos à aprovação do curador).
Todavia, e ainda que se pretenda a adoção de um conjunto de medidas
flexíveis, são de antever dificuldades de aplicação. É muito difícil (e exige a
disponibilidade e o contributo de várias partes) que os tribunais encontrem,
para cada situação, a solução que simultaneamente proteja o indivíduo (ao
abrigo da ideia de «solidariedade humana, reclamada pela própria instância
ético-moral») e respeite a sua liberdade.
Em qualquer caso, terá de ser tido em consideração pelo juiz que está em
causa uma das mais gravosas intromissões do Estado na esfera jurídico-privada
do indivíduo.
Fonte: daqui
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