quinta-feira, 24 de março de 2022

A moral e a política "O legado de Gonçalo Ribeiro Telles", segundo António Eloy

(António Eloy)

(Publicado na Gazeta da Beira de 17 Março de 2022)

A moral e a política

O legado de Gonçalo Ribeiro Telles

“O homem é a natureza consciente de si!”

  Elisée Reclus

 “ A rã não bebe água do lago onde vive?”

Adágio popular

A ecologia é uma política sócio-cultural.

Antes de mais uma nota: tenho origens em Barrancos, de uma família muito ligada à terra, um dos meus primos foi um dos criadores da raça mertolenga, e toda a vida os animais fizeram parte da minha vida.

E conheci Gonçalo Ribeiro Telles * pessoalmente em 1976 ou 77 e desde então, sendo que já era um militante e dirigente ecologista, ele faz parte da minha vida.

E sempre estive envolvido em discussões sobre a ruralidade, a vida dos animais, a pastorícia e com G.R.T. desenvolvi o entendimento da relação entre a agro-silvo-pastorícia e a nossa sociedade e cultura.

O toiro, seja na lezíria, seja no montado é um animal fundamental para a continuidade do espaço e da sua humanização. G.R.T. era um homem do Ribatejo e de todo o lado, muitas vezes falámos da relação do toiro com o homem e claro o cavalo, sendo ele de uma emérita família de cavaleiros.

A importância deste bovino para o equilíbrio da natureza, que é sempre uma parte criação, é da maior relevância. Onde hoje há águias imperiais ou abutres negros é em zonas de ganadaria taurina, a ligação entre a vida selvagem e a ruralidade é estreita.

Não se pode entender o ambiente sem o cultivo da vida, sem as relações que para esse cultivo sempre estabelecemos com a  nossa criação, as tosquias das ovelhas, a produção de queijos de diferentes espécies, a matança do porco e o fabrico de enchidos, sempre em lógicas de continuidade. Assim o toiro, desde sempre elemento de culto e de imaginário social e religioso, porque há sempre religiosidade nos rituais, e nas suas festas. A história dos toiros e da sua relação com o passado de onde vem e o futuro que modifica tem muitas gerações e tem vindo a transformar-se, com perdas é certo, mas com ganhos que são na sua conceptualização e melhor articulação com a palavra e o esclarecimento bem estruturado.

A cultura do toiro é fundamental para manter os nossos campos, sem que sistemas agrícolas destrutivos em lógicas intensivas contribuam para a sua monotonia e a sua destruição, seja por plantações em regadio intensivas, seja por plantações agro-florestais espúrias do território. Os toiros preservam o território, a sua existência e continuidade, obviamente articulada com os cultos que generam  foram base das discussões que mencionei que sempre chamaram a atenção para que o animalismo é uma doutrina ideológica contra o ambiente, a ecologia, e a natureza humanizada.

G.R.T., mesmo quando atacado ferozmente por animalistas, defendeu a ruralidade, a vida do campo e a sua continuidade.

Não consigo compreender como esta questão, este dado objectivo demora tanto em aparecer na discussão, ensarilhado em putativos e absurdos conceitos de espiritismo, de bruxaria animal, e de dados freudianos e espiritistas na análise da vivência animal.

Não se pode defender o ambiente sem defender as nossas criações integradas devidamente neste. O toiro não é, não pode ser, estabulado nem criado intensivamente. Ponto.

Comecei por referir a minha etnia, sou dos irredutíveis, como coloquei na capa de um dos meus livros monográfico sobre Barrancos. Nunca esquecerei dois momentos,

Um quando uma dirigente de uma organização animalista, com quem tinha e tenho uma relação cordial me disse nos anos 90 - António vamos iniciar uma grande campanha para acabar com as toiradas e vamos começar pelo elo mais fraco, Barrancos. Julgo que ela não sabia a minha origem, sabendo que eu contestava essa campanha, pensei- vai-te sair o tiro pela culatra....

A estória da luta do povo de Barrancos está bem documentada, durante cerca de 10 anos fomos vítimas e também arautos de uma cultura. E recordo no, talvez, momento mais crítico, quando falei pessoalmente com o ministro da tutela, colega universitário que me garantiu que a força não iria intervir, com mortes, que poderiam ser muitas para evitar o fim inevitável do animal, para ser comido, e como G.R.T. que me protestou o seu apoio incondicional e pessoal, mas acrescentou -António a nossa tradição não é essa..mas compreendo muito bem Barrancos! Continuamos.

*Cumpre este ano o centenário do nascimento do nosso mestre e ainda hoje louvado por tantos que desprezam o seu pensamento, mas chorado e continuado por outros que procuram dar vida ao seu legado. No dia 25 Maio, dia do centenário, estaremos atentos.

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