terça-feira, 3 de agosto de 2021

Contributos para a História de Barrancos (XIX) – a Fêra II

No ano em que Barrancos não terá a sua tradicional fêra, pelo segundo ano consecutivo, vale a pena conhecer o contributo histórico sobre a "Fêra de Barrancos", da autoria de José Peres Valério, publicado ontem no seu perfil facebook, que o eB aqui partilha, pelo seu relevante interesse para o conhecimento da história da nossa Fêra:
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"No passado dia 13 de Maio escrevi o texto sobre a Fêra em Barrancos. “Citei que, não era fácil escrever sobre a Fêra se observarmos a diversidade de acontecimentos que se arrasta desde o seu início”. Todavia achei por bem dar continuidade em alguma coisa que julgo ser útil.

A tabela abaixo mostra como evoluiu o número de habitantes em Barrancos de 1878 a 2017. Como se demonstra, houve um aumento acentuado até 1950 entrando em queda até 1970 e seguintes.

Ano

População

(Habitantes)

   1878

   1950

   1970      

        2386

        3624

        2610

(Fonte: Censos; Anuário Estatístico da Região Alentejo 2017)

Vêm estes dados a propósito dos barranquenhos que viviam dia-a-dia em Barrancos, diretamente ligados à fêra. Esta era do povo e mais ninguém, salvo alguns vizinhos, de aldeias mais próximas Portugal e Espanha, que se deslocavam a assistir a este evento. Porém, o êxodo verificado em fins da década de 1950 principio de 1960, citado no contributo XVIII, ditou a saída de um número bastante acentuado de pessoas da nossa terra, que voltava anualmente para assistir à Fêra. A maioria dos aficionados do mundo do touro, de outras paragens, não participava por não possuir meios de transporte, nem capacidade económica, face a pobreza, que se fazia sentir em todo o país. 

Era uma festa discreta. Só a partir de fins de 1960 começa a haver notícias na imprensa, pela pior circunstância. Todavia, o barranquenho sem esquecer as suas raízes, com o sentimento que se apoderava dele nesta altura, deslocava-se como podia e estava presente na sua/nossa Fêra.  

Como já narrei em outros artigos, a vida naquela altura não era fácil. Os únicos dias de diversão que o ser humano tinha nesta terra  eram: a Fêra (a mais vivida) ; o Natal; o Carnaval; Páscoa; Romaria de Flores e pouco mais, para expressar o desejo que lhe ia na alma. Sim, porque tinha que passar um ano entre as Fêras para poder satisfazer o apetite  acumulado, fazendo esquecer por um lapso de tempo, as agruras da vida passadas durante esse ano.

Para celebrar o dia 28 de Agosto, idosos, menos idosos e juventude, de entre os mais desfavorecidos, iam fazendo um mealheiro no decorrer do ano para, chegado este dia, se poderem apresentar condignamente  vestidos com indumentária  nova à semelhança dos mais abastados. Como os tempos eram difíceis, sem trabalho,  deitavam mãos a tudo que pudesse dar uns tostões para confraternizar com familiares e amigos nos quatro dias citados. O período que antecedia a Fêra (meses de Julho e Agosto), o alfaiate, Tio João Tereno, (residente na Praça do Município), suas aprendizas e costureiras (aproximadamente 15), trabalhavam numa azafama constante ─ muitos dias até à meia-noite ─, para poderem ter pronta as encomendas que os clientes faziam. Estas trabalhadoras, aprendizas, não tinham vencimentos. Era o que se  praticava na aprendizagem de qualquer oficio. As costureiras ganhavam cinco escudos por cada calça feita. Outras faziam estes trabalhos por conta própria. Contudo, no pouco que havia para ver, mas muito para aquele tempo, o povo expressava os seus anseios para os dias que se avizinhavam. Nestes dias, o sossego não pairava na mente dos jovens nem na de muitos dos mais idosos. Eram touros, bailes, confraternização entre familiares e amigos com uns copos à mistura… dias após dias até o final das festas. O barranquenho ausente, com a  hospitalidade que o distingue, trazia amigos e companheiros de trabalho  de outras paragens onde ganhava a vida. Para esses foram dias  inesquecível. Quando partiam, já desejavam que o tempo fosse breve para voltarem a estar presentes neste lugar acolhedor. Eram  dias sem ir à cama, imbuídos na farra com que carateriza a nossa Fêra, da hora do encerro, passando pelas corridas de touros e bailes, até ao dia seguinte.  

Todavia, há pormenores que não se esquecem e nos remetem para aqueles tempos nostálgicos. Quando as touradas terminavam, o povo tinha um único caminho a seguir: o do Alto Sano. Sítio onde estavam centralizados os carroceis, circo, barracas: de bugigangas, fotografias,  comes e bebes. De manhã, Tia Brizida vendia os heringo na Praça do Município, que neste momento está-me a chegar o cheiro agradável daqueles fritos! (cheiros de fêra!). ─ Só que, infelizmente com este inimigo camuflado, mais um ano ficamos sem  o cheiro agradável ─. Também na Praça do Município os irmãos Perez vendiam torrão, barquilhos, suspiros,  grão torrado etc., muito apreciado pela população. Durante o ano vendiam em casa e pelas ruas.

As crianças, ao verem as barracas cheias de brinquedos, de vários géneros, entravam em êxtase pedindo aos pais que lhes comprassem um. Numa barraca, uma criança chorava porque queria um brinquedo. A mãe, com pena, lhe dizia: amanhã o compro. Mas, doendo-lhe na alma, por ver o filho carpir daquela maneira, meteu a mão no bolso e tirou um saquinho de pano onde trazia os magros tostões. Deitou contas à vida ─ não chegava para adquirir alguns alimentos que tinha em mente ─ mas resolveu  comprar-lhe um dos mais barato: uma roda em madeira, com um boneco a pedalar. Uma chapa sonorizava o brinquedo enquanto a criança o empurrava. Deu-lhe uma alegria esfusiante, aquele mimo da mãe. Noutro lado, certamente, ficou a falta! Os pais dos mais abastados compravam outros brinquedos  mais caros.

A Rua de S. Sebastião ─ da Praça do Município ao Alto Sano ─, àquela hora, era um mar de gente. As tabernas de Tio Zé Burgos, Tio João Laranjinha e, no largo, Tia Vitória, atenuavam o calor abrasador vivido durante as touradas, com bebidas (a temperatura  natural, pois não tinham frigorífico nas décadas de 1950/60). Era um alívio para os mais ávidos, mesmo sem estarem frescas.

Entretanto, Tio Zé Luís Alcario percorria a praça com umas grades de pirolito, gasosas, laranjadas, etc. vendendo e matando a sede aos mais aflitos. Em anos mais recuado, Tio Minhique (alcunha) transitava pela praça cedendo, ─ por umas dezenas de centavos ─, um quartilho de água e assim arrecadavam uns tostões para fazer face ao orçamento familiar.

Porém, à parte da história narrada, aproveito para expor o seguinte:

Nos dias de hoje, nada do que se passava no largo existe. Não temos um só espaço para todas essas diversões, incluindo barracas de comes e bebes, que estão dispersas. Uma barraca de bijutarias na rua próximo ao mercado, outra na estrada junto ao jardim público, outra em Montes Claros, etc. Os investidores, por muita vontade que tenham em vir dinamizar a nossa Fêra e fazerem o seu negócio, podem  perder o desejo à nascença.

Como as autárquicas estão ao virar da esquina, daqui faço um apelo à futura Câmara, se julgar por bem: criar condições para que esta lacuna seja  colmatada para o bem  da festa e de Barrancos.

Gostaria de terminar esta descrição com o desejo de uma Fêra bem passada e cheia de diversões. Mas a peste, que teima em massacrar-nos, não nos permite, mais uma vez, gozar esta festa que herdamos de nossos antepassados.

Barrancos, 16/7/2021 - ass)  José Peres Valério

(imagens JPV)

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