Pela sua importância histórica permito-me, sem autorização do seu autor, publicar na íntegra a excelente reportagem publicada hoje no Público, P2, pág. 8-9 da autoria de Carlos Pessoa:
"Centenas de refugiados escaparam de uma morte certa em 1936 ao fugirem para Barrancos. Um documentário e um livro contam aos espanhóis que essa história com final feliz foi obra de um oficial da Guarda Fiscal: tenente António Seixas.
São sete horas da tarde em Badajoz num quente dia de Primavera. Está a chegar ao fim a primeira jornada do congresso Extremadura y la Guerra Civil 70 Años después de su Final, a decorrer no centro histórico da cidade. Para trás ficou uma sucessão de palestras, comunicações e testemunhos de familiares de pessoas perseguidas durante a guerra civil. A sessão foi longa e a muitos dos participantes espera-os ainda uma viagem de retorno a Cáceres, já pela noite dentro.
Ángel Hernández e Antonio Navarro sobem ao palco para apresentar o documentário Los Refugiados de Barrancos, feito pelas Producciones Morrimer (Llerena, localidade da província de Badajoz). A assistência que enche a sala segue com atenção a introdução feita pelos autores, a mesma atenção que dedicará nos 67 minutos seguintes à exibição do filme.
O que salta imediatamente à vista é que a maior parte da assistência é composta por jovens. Nada que surpreenda Julián Chaves Palacios, professor da Universidade da Extremadura e director do Projecto Recuperação da Memória Histórica da Extremadura (Premhex): "Organizamos há vários anos eventos deste tipo e contamos sempre com uma substancial presença de jovens, interessados em conhecer melhor a guerra civil e aceder às últimas investigações sobre esse acontecimento bélico de tanta transcendência em Espanha."
José Manuel Corbacho, advogado em Badajoz e presidente da Associação para a Recuperação da Memória Histórica da Extremadura (Armhex), tem uma explicação para esse crescendo de interesse pelo passado próximo de Espanha: "O pacto de silêncio estabelecido durante a transição da ditadura para a democracia fez com que uma geração marcada pela repressão e pela memória oficial franquista quase não tivesse acesso à informação. Os netos dessa geração, sem a carga do passado, começaram a querer saber e a investigar essa outra parte da sua história que não foi contada. Daí a significativa presença de jovens em todo o tipo de iniciativas que se organizam sobre o tema. Eles compreenderam que aquilo que está em causa não é reabrir feridas, mas fechá-las de forma adequada e isso só pode ser feito com verdade, justiça e reparação, e não com o esquecimento."
O interesse dos espanhóis pela história recente do país, aparentemente inesgotável, não se limita ao que ocorreu desde os anos 1930 no seu próprio território. Uma prova disso é Los Refugiados de Barrancos, um documentário sobre os acontecimentos naquela vila no Verão de 1936.
O golpe militar desencadeado a 18 de Julho desse ano pôs a ferro e fogo toda a região que vai de Huelva a Badajoz. No começo de Setembro, as últimas localidades situadas junto à fronteira portuguesa são conquistadas pelas tropas de Franco. O apoio de Salazar aos nacionalistas não aconselhava a fuga para Portugal, onde os refugiados eram detidos e entregues às tropas franquistas.
Apesar disso, perseguidos pelos nacionalistas e impedidos de atingirem a zona republicana no Leste da Extremadura, muitos tentaram a sua sorte em Portugal. Foi o caso de mais de mil pessoas de todas as idades que conseguiram atravessar o rio Ardila, fronteira natural entre os dois países, perto de Barrancos. Ali se mantiveram até ao começo de Outubro, em dois campos improvisados nas herdades da Coitadinha e das Russianas.
Graças ao tenente da Guarda Fiscal António Seixas, responsável pela vigilância fronteiriça numa zona de 120 quilómetros entre Mourão e Vila Verde de Ficalho, não foram recambiados para Espanha. O oficial e os seus homens também impediram as investidas dos nacionalistas que, por mais de uma vez, esboçaram a intenção de entrar em Portugal e eliminá-los. Os ecos internacionais do que acontecera em Badajoz a 14 de Agosto - o massacre de centenas de pessoas no assalto e nos dias que se seguiram pelas tropas coloniais do tenente-coronel Yagüe, testemunhado por alguns jornalistas, entre os quais Mário Neves (Diário de Lisboa) - forçaram o Governo português a promover a repatriação dos refugiados para o lado republicano.
Nos primeiros dias de Outubro 1025 pessoas fizeram a viagem de camião de entre Barrancos e Moura. Foram metidas num comboio especial que as levou até Lisboa, onde embarcaram no navio Niassa. A chegada a Tarragona foi a 13 de Outubro. Terminada a operação de salvamento, o tenente Seixas foi alvo de um processo disciplinar que se traduziu em dois meses de prisão e passagem compulsiva à reforma. O oficial recorreu da sentença e ganhou o processo. Foi reintegrado em 1938, como comandante da secção de Sines da Guarda Fiscal, passou à reserva no ano seguinte, iniciando uma nova fase da sua vida como armador. Morreu em Lisboa a 28 de Outubro de 1958.
Tremendo acolhimento
Ao fazer um documentário sobre outro episódio da guerra civil na Extremadura (La Columna de los Ocho Mil, sobre a perseguição e eliminação de alguns milhares de refugiados republicanos que tentaram alcançar a zona republicana), o colectivo Morrimer é confrontado com "muitas pequenas histórias paralelas muito interessantes", diz António Navarro, psicólogo e um dos membros da associação. Uma delas é a de António Seixas, que lhes fora contada pelo historiador espanhol Francisco Espinosa.
"Quando acabámos o documentário, fizemos um jantar com toda a gente que tinha colaborado nele. Foi feita a sugestão de fazer um filme sobre Seixas. A ideia agradou-nos, Espinosa apresentou-nos a historiadora portuguesa Dulce Simões, que trabalhava no tema, e avançámos", conta Ángel Hernández, funcionário da Junta da Extremadura e um dos produtores de Los Refugiados de Barrancos.
O que mais impressionou os autores do documentário foi o "tremendo acolhimento" que tiveram em Portugal, associado à "recordação viva" do episódio. Isso contrastava vivamente com o "apagamento" em Espanha, comenta Fernando Ramos, actor e produtor teatral: "Quando chegámos ali, demo-nos conta de que a fronteira realmente não existe. A população fala perfeitamente os dois idiomas sem deixar de conservar a sua identidade própria, possivelmente fruto do isolamento durante muito tempo. Fazem gala e têm muito orgulho na sua culturalidade barranquenha."
O filme, que levou dois anos a realizar, reúne os testemunhos directos dos acontecimentos de dez barranquenhos e refugiados, além de depoimentos de jornalistas e historiadores portugueses e espanhóis. Contou com um pequeno financiamento da Junta da Extremadura, investido na aquisição de imagens de época, banda sonora original e efeitos especiais.
O acolhimento da obra surpreendeu os seus autores. "Vamos a todos os sítios em que somos solicitados, exibimos o filme, participamos em debates e vendemos cópias a quem estiver interessado", diz António Navarro. Ángel Hernández reconhece que a carreira comercial é mais problemática: "A vida do documentário é muito difícil, pois há pouco mercado. Já conseguimos vender o filme à televisão autonómica da Extremadura, que o difundirá em Setembro, e iniciámos conversações com um canal de televisão português."
Memórias vivas
O que se passou em Barrancos em 1936 tem sido um elemento central na vida de Dulce Simões desde que saiu da RTP, em 2003, e enveredou pela carreira académica. Licenciada em Antropologia pelo Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa (ISCTE), prepara actualmente o doutoramento com uma tese sobre os mecanismos de dominação e resistência associados às memórias da guerra civil espanhola em Barrancos.
O seu interesse pelo conflito ibérico, porém, é mais antigo e data de 1986, quando colaborou com o historiador César Oliveira na preparação de uma série documental para a RTP - o projecto não avançou porque a administração da televisão pública não considerou oportuna a sua concretização - sobre os impactos da guerra civil na fronteira. Dulce Simões percorreu sistematicamente as regiões de fronteira no Alentejo, Minho e Trás-os-Montes, onde as "memórias locais eram muito intensas". Mas foi o episódio de Barrancos que mais a surpreendeu, porque "estava tudo muito vivo, com uma clara identificação dos ricos com o golpe e dos pobres com a República".
Foi apenas em 2002 que a ex-realizadora de televisão voltou a Barrancos. Começou a trabalhar de forma sistemática sobre o tema, publicando em 2007 o livro Barrancos na Encruzilhada da Guerra Civil de Espanha (Edições Colibri-Câmara de Barrancos) onde dá a conhecer as memórias inéditas de um dos filhos de António Seixas sobre os acontecimentos. Esta obra acaba de ser publicada pela Editora Regional de Extremadura (Barrancos en la Encrucijada de la Guerra Civil Española. Memorias y Testimonios, 1936).
Um facto insólito
"Participei em Setembro de 2006 num encontro de homenagem às vítimas da guerra em Oliva de la Frontera. Conheci Cayetano Ibarra, coordenador do Premhex, que mostrou interesse em publicar o trabalho, na altura ainda inédito", diz Dulce Simões. Para a investigadora, "é mais uma prova do interesse que existe por parte de alguns quadrantes políticos neste movimento social de recuperação da memória histórica, que integra as famílias e uma nova geração de historiadores".
A realização do documentário permitiu a muitos espanhóis tomarem contacto com um episódio do conflito pouco conhecido. A publicação do livro reforça essa divulgação. A importância do que aconteceu em Barrancos, dando a conhecer à geração actual um caso com "final feliz" da dolorosa guerra civil, não oferece qualquer dúvida a Julián Palacios: "Portugal apoiou os sublevados desde o primeiro momento e foi um firme aliado da zona controlada por Franco. A colaboração estendeu-se ao aspecto repressivo, mediante a entrega às tropas franquistas de muitos republicanos que entraram em Portugal para não serem presos. Isso foi a norma e o caso dos detidos de Barrancos a excepção. Foi um facto insólito, e daí o interesse em destacá-lo e dá-lo a conhecer, como felizmente aconteceu graças ao documentário e ao livro."
José Corbacho concorda que "é um episódio absolutamente excepcional e que não voltou a repetir-se, nem quantitativa nem qualitativamente". Para o presidente da Armhex, "foi o mais importante êxodo de refugiados da Extremadura que conseguiram, apesar dos obstáculos levantados pelas autoridades políticas salazaristas, obter asilo de facto e depois de jure, o que lhes salvou a vida".
Como Palacios e Corbacho, Dulce Simões considera que foi uma conjugação única de circunstâncias que tornou possível o salvamento daqueles refugiados: "O que se passou não é iniciativa deste ou daquele, é uma consequência da correlação de forças existente."
ass) Carlos Pessoa
(Público, de 25/05/2009)
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