quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Contributo para a História de Barrancos XV – o Tejo

Com a cortesia do seu autor, José Valério, publica-se o  "XV contributo", desta vez baseado em factos reais: 
(...)

Decorria o fim da década de 50 princípio de 60 do século transacto. A vida na província, nomeadamente em Barrancos, era de dificuldades atrás de dificuldades para os mais desprotegidos. Famílias havia com seis e sete pessoas, às vezes mais, que, sem trabalho, nem subsídios de qualquer natureza para colmatar as agruras vividas, tinham que recorrer a todos os meios. Inclusive mandar trabalhar, - servindo em casas de lavradores, - os  filhos e filhas, de tenra idade, crianças ainda, a troco da alimentação e de uns parcos tostões. Estas, sabendo a miséria existente, entregavam tudo que ganhavam aos pais. Neste período, por força das circunstância, houve  um grande êxodo à procura de novos mundos. Partiam com a esperança de verem portas abertas, para sair do obscurantismo em que viviam e  ganharem o suficiente para matar a fome que os assolava na sua terra. Com as partidas, para os  concelhos de Almada, Seixal e Amadora, a grande maioria, obtiveram trabalho e jornas compatíveis, outros para estrangeiro (França, Alemanha, etc.).

Os que cá ficaram continuaram com as sua dificuldades e lamentações por muitos e longos anos.

Mas eis que uma criança, o Pedro (nome fictício), com 15 anos foi trabalhar para casa de uma lavradora como criado, a fim de: acarretar água, com barris de madeira de 12 litros; - encontrou muitas dificuldades em os carregar no burro, já por si alto, pedindo ajuda às pessoas mais velhas que se prontificavam a ajudá-lo - ;andar aos mandados; varrer o quintal; cabanas; serrar lenha para o fogão; etc. Ia para casa da senhora ao nascer do sol e só regressava ao lar depois do jantar. Por norma essas casas tinham sempre um cão de guarda no quintal. Esta não fugia a regra. E quando Pedro começou a prestar serviço existia um corpulento cão. Velhinho, surdo, sem forças, o que fazia era estar deitado. Até que findou o seu ciclo de vida. O Pedro desconhecedor de para onde levaria o animal, foi informado que o carregasse no burro, com a ajuda de um colega e o transportasse para a “cova dos burros”, a céu aberto, situada no barranco da Torrita (baldio) no lado Oeste da Bica, com o mesmo nome, na estrada para a Pipa. Era um local aonde todos os animais mortos iam ter, para alimento das aves sarcófagas e outras, nomeadamente os abutres, com bastante abundância.

A senhora não queria ver o quintal sem um cão. Assim, diligencia, junto de familiares que lhe arranjassem um animal de raça. Ato continuo, um familiar arranjou um cachorro, rafeiro alentejano, que para gaudio da criança era enorme. Brincava com ele, levava-o à água montado no burro, apanhava a arreata e encaminhava o burro onde o miúdo pretendesse ir.

Entretanto o animal cresceu e atingiu a idade de adulto.

Certo dia, a patroa convida uns amigos, ausentes de Barrancos, para passarem um fim-de-semana em sua casa. Os convidados quando chegaram a casa, depois das apresentações, dirigiram-se ao pátio. O animal ao ver aquele rebuliço, não gostou. O que fez: pôs-se atrás da porta e quando as pessoas saíram para o pátio ameaçou-as com um latido grave. Os hóspedes não queriam sair com medo do animal. A patroa chamou o Pedro e disse-lhe para atar o cão. A criança cumpriu as ordens mas, ao cair da tarde o animal foi solto como sempre e a sua intuição era a porta. E toca a colocar-se no mesmo local onde tinha ladrado a primeira vez. A patroa, novamente zangada, disse que ia mandar o cão para o campo. E assim fez.

No dia seguinte o animal é posto em cima do carro de tração animal e levado para o campo. Só que, quando percorridos uns 200 metros, já fora do espaço habitacional, o animal disse que não queria ir mais para frente e saltou do carro regressando à casa que o viu crescer. Para espanto e ao mesmo tempo alegria da criança. Quando a senhora o viu novamente no quintal chamou o jovem e disse-lhe: ─ amanhã vais tu com o tio Chico levá-lo à herdade; Para espanto da criança, mais uma tristeza! No dia seguinte, como ordenado, lá foi o miúdo levá-lo e por lá ficou, com enorme mágoa deste.

A vida continuou normalmente, mas sem cão.

Como tudo na vida, o Pedro cresceu e atingiu a maturidade. Já era capaz de desempenhar funções no trabalho do campo ou outros e despede-se da patroa para ganhar mais alguns tostões.

Entretanto, começou a trabalhar em vários locais e 3 ou 4 anos depois foi trabalhar para a Mina da Apariz saindo de casa às 4 horas e chegando ao trabalho por volta das 6 horas e meia, percurso feito a pé, diariamente, bem como o regresso para casa.

Para espanto, depara-se com um acontecimento atípico. Ao passar por uma herdade, noite escura, cerrada, ouve o ladrar de um cão muito próximo da vereda, que dia-a-dia percorria. Aproximando-se cada vez mais, ladrando e ameaçador, o Pedro apanhou umas pedras e atirou-lhas. Quando se sentiu ameaçado, o animal mais insistiu. Eis que o adolescente se lembrou de imediato que era, ao vê-lo com o pelo russo/branco, o cão que tinha criado e gritou-lhe: Tejo, Tejo, Tejo. O animal deteve-se por alguns segundos e reconhece aquela voz, abrandando a investida e ladrando sumidamente. Caminha em direção ao homem. Este chama-o constantemente pelo nome. Acercou-se, cheirou-o, provocando uma emoção enorme ao saber que estava na presença do seu criador. Começa a saltar-lhe para o peito fazendo-lhe festas, identificando-o reconhecidamente. Ambos celebraram efusivamente o encontro. O criador não esqueceu o sentimento do animal e seguiu o seu destino. Atrás, percorrendo uma distância de uns 100 metros, seguiu o Tejo até que, vendo o distanciamento, regressou ao redil onde se encontravam as ovelhas a seu cargo.

Lições de gratidão que os animais nos transmitem.

Baseado numa história verídica.

Barrancos, 13/02/21 – as) José Peres Valério

(...)

(Foto: Manuel Valério)